CONTOS

29/09/2011


PROUST E OS DESAPARECIDOS




Comecei a ler Proust por causa de Jane, menina ruiva, de pele sardenta e olhos esverdeados às vezes azulados. Ela tinha predileção pela língua francesa. Ainda na puberdade já lia os romances e as poesias de autores franceses no original e seu tino literário criticava ferozmente as traduções, qualquer tradução. Alguém incutira na sua cabecinha bonita e analítica que conhecer as línguas estrangeiras era a porta para a independência e, principalmente, para a fuga definitiva da pequena cidade sem perspectiva onde vivíamos.
Jane tinha aparência daquelas meninas arrogantes que saem nas revistas de moda. Gostava de roupas extravagantes, cores diferentes e, de certa forma, não era useira dos ditames da moda. Enquanto suas colegas caiam no gosto de mostrar as pernas com o surgimento da minissaia, ela adotara a calça cumprida, cujo uso era igualmente combatido pela mãe e pelas avós. Mulheres não usam calças, diziam, calças são para homens. Ela fazia ouvidos moucos. Algumas colegas, naquele ano de1968, que mais tarde se tornaria emblemático para o Brasil e o mundo ocidental, adotaram a liberalidade do sexo livre – ainda que escondido, e muito bem escondido – e outras, também em segredo, experimentavam uma novidade curiosa: o cigarro de maconha. Era um experimento pessoal muito diferente do lança-perfume do carnaval e uma novidade extravagante para nossa pequena cidade. Está certo que com a mesma rapidez que chegou a maconha sumiu. Ela chegara à cidade com um rapaz alto e falante, cheio de prosa e de pose com nome estrangeiro, Stewart, que logo foi diminuído e acaipirado para “Vart”. Numa manhã a polícia entrou na sua casa e dele nunca mais se teve notícia.
A família de Vart em vão o procurou de delegacia em delegacia. Pôs anúncio nos jornais, falou nas rádios, virou o mundo, foi até recebida por um assessor muito próximo do presidente Costa Silva, em Brasília, mas nunca mais encontraram o Vart. O delegado que o prendeu disse, em documento oficial e assinado, que Vart permaneceu preso 24 horas e que fora solto na manhã seguinte. Evaporou-se o Vart. Com ele sumiu da cidade as primeiras inalações da canabis.
Apesar da insistência dos amigos Jane passou longe da novidade. Preferia uma cerveja gelada, com predileção por Antarctica. A mesma marca que o pai gostava. Achava bonito mulher fumar e deu suas primeiras tragadas aos 13 anos. A partir daí o maço de Lincoln passou a freqüentar sua bolsa. Mas tarde mudou para Albany, um cigarro com filtro de carvão que prometia suavizar a fumaça que entrava nos pulmões. Jane era uma menina prafrentex sem ser vulgar nem grapette. Ah... grapettes eram as meninas que transavam com qualquer um ou nos primeiros encontros. Quem bebe Grapette repete, era o slogan do refrigerante de uva.  Jane estava longe de tudo isso.
Ela freqüentava as missas de domingo. Fazia leitura dos Evangelhos, cantava no coro da igreja e era filha de Maria. Participava do grupo de jovens, ajudava na organização das quermesses anuais e lecionava as primeiras letras aos analfabetos, com o bom senso de jamais usar ou pronunciar o nome de Paulo Freire. Como não era alienada, tinha conhecimento da repressão militar. A escola para adultos funcionava no salão paroquial, sob as vistas sempre vigilantes do padre Arnaldo, um italianinho de compleição miúda nascido no porto de Brindisi, na Apúlia. As mulheres, solteiras e casadas, donzelas e carolas suspiravam por ele. Tinha muita parecença com Alain Delon.
Jane não saia da casa da minha prima Yara. As duas tinham longas conversas sobre tudo. Passavam horas, todas as tardes, em animadas prosas. Três anos mais novo, eu vivia mais na casa de Yara que na minha quando não estava brincando nas ruas, jogando bola ou nadando nos poções dos córregos em volta da cidade. A mãe de Yara, tia Olinda, tomava conta da quitanda na frente da casa e o pai, tio Totonho, havia sumido no mundo sem deixar rastro nem notícia. Mil fantasias foram criadas em torno do seu sumiço. A família adotou a que mais lhe convinha, a de que ele havia sido assassinado e enterrado nalgum lugar desconhecido e que cedo ou tarde o assassino apareceria. Nunca apareceram, nem ele e muito menos o matador. As duas mocinhas, entrando nos 16 anos, tinham a casa toda para suas fantasias e colóquios e eu, com 13 anos, preferia a companhia delas.
Elas me davam suas revistas e livros, não se importavam muito com a minha presença. Quando tinham algum segredo ou conversa mais íntima colocavam-me para correr. Muitas vezes eu fingia que saía, mas ficava de cócoras na porta, olhando pelo buraco da fechadura, tentando ouvir suas falas. Foi assim que vi pela primeira vez uma mulher nua, a prima Yara, com seus peitos pequenos e pontudos e o lindo triângulo negro logo abaixo do umbigo, igualzinho aos catecismos de Carlos Zéfiro que devorávamos em solitárias e até coletivas sessões de masturbação, com torneios para ver quem ejaculava primeiro. Meu sonho era ver Jane pelada. O máximo que consegui foi ver suas pernas longas e brancas até a altura da calcinha ou seu bumbum empinado e redondo quando ela se abaixava para pegar alguma coisa. Para elas, na verdade, eu era um moleque pentelho e azucrinante.
Jane percebeu minha queda pelos livros. Emprestava-me as obras de Julio Verne. Li quase todos os seus livros, alguns desconhecidos até hoje. “A Estrela do Sul”, por exemplo. Ou “A Jangada”.  Eu queria ser como o capitão Nemo, cruzar os oceanos debaixo d’água, conhecer o fundo do mar, os países distantes, povos desconhecidos. Depois me trouxe Ernest Hemingway e eu quis ser o menino Manolin para auxiliar o velho pescador Santiago e mais tarde quis ser Thomas Hudson e morar na ilha de Bimini na corrente do golfo. Sonhei com pesca submarina, cabaços nas ilhas caribenhas e idílios amorosos. Então ela trouxe Proust. Por causa de Proust parei de ler. Era muito difícil ler Proust e eu não tinha como agradá-la. Por causa de Proust afastei-me de Jane e Yara. Por causa de Proust eu quis fazer uma faculdade.
Certo dia, cerca de dois anos após a chegada de Proust à minha vida, soube que Jane não estava mais na cidade. Ela fora estudar na USP. Somente uma pessoa tão brilhante podia sair da nossa pequena cidade para estudar na USP. Então senti um vazio que nada podia preencher. Soube então o que era a paixão e o abandono. Enquanto ela estava presente eu sentia o conforto de vê-la à distância. Sua presença me bastava. Agora, sua ausência era uma dor lancinante. Aquela paixão juvenil me consumia e caí doente, em estado febril. O farmacêutico José Altino, que todos chamavam de doutor, diagnosticou gripe brava. Repouso, canja de galinha e gemada com chá de alfavaca. A doença demorou mais tempo que o previsto. Oito dias de cama e mais duas semanas de abatimento e desinteresse nas coisas. E meses de uma tristeza implacável que tornava meus dias cinzentos.
Jane nunca mais voltou. Nem a passeio. Pouco tempo depois de sua partida, seus pais desfizeram-se de seus negócios na cidade e se mudaram para a capital. Jane tornou-se uma imagem indelével na minha memória, amalgamada na retina da alma. Namorei, noivei não sei quantas vezes, mas jamais me casei. A ausência de Jane era tão presente que mulher alguma conseguia afastá-la de mim.
Formei-se em Medicina. Por causa de Proust talvez. Entretanto, jamais retomei o contato com os livros pelo gosto de ler. Após Jane, tudo o que li foi por obrigação de estudo ou de ofício. Escolhi patologia e medicina legal e enveredei por um caminho solitário na profissão. Por vários anos procurei reencontrar Jane. Fiz viagens, vasculhei São Paulo da Sé à periferia, estive na USP e como médico ligado à Polícia Científica tive acesso à sua inscrição no curso de Filosofia, mas ela o abandonara na metade do primeiro ano. Li e reli as listas telefônicas de São Paulo e de todas as cidades que visitei ao longo da vida. Nada. Liguei para centenas de mulheres com o nome de Jane na vã esperança de encontrá-la talvez casada e usando o nome do marido. Mesmo Yara, sua melhor e mais íntima amiga, jamais teve notícias dela. Tudo em vão.
Resignei-me, como a família do tio Totonho, o desaparecido. Ah! O ex-desaparecido. Tio Totonho foi descoberto por acaso trabalhando numa praia deserta do Rio Grande do Norte, num pequeno lugarejo chamado Barra do Cunhaú, pertinho de Canguaretama, a menos de sete quilômetros da Praia da Pipa. Vivia com uma descendente de caboclos e holandeses e tinha com ela uma penca de filhos. Quem sabe um dia eu encontraria Jane numa praia qualquer...
Logo no comecinho dos anos de 1990 fui convocado para auxiliar numa enorme tarefa de exumação de cadáveres. Eram ossadas humanas encontradas em valas comuns abertas no Cemitério de Perus durante a sua construção entre 1970 e 1971. Dezenas de profissionais foram mobilizados para identificar os corpos, vítimas da perseguição política no recrudescimento da ditadura militar. Dias depois, um casal apareceu no IML procurando Jane Platen Pinheiro. O Platen era da mãe, descendente de alemães. Eram os pais de Jane, alquebrados pela idade e pela dor da perda da única filha. Sobre a minha mesa de trabalho estavam os ossos descarnados da mulher que amei toda a minha vida. Fora presa numa batida policial a uma festinha de fundo de quintal organizada por um simpatizante da VAR-Palmares. Assim como eu, seus pais passaram os últimos vinte anos procurando a filha desaparecida, gastando o que tinham e o que não tinham, inclusive a saúde e as esperanças.
Após assinar o atestado de óbito e liberar os ossos para sepultamento cristão, fiquei ali, plantado no chão, vendo aquele casal se afastar em passos lentos, ensimesmado e pensando na frase que o pai disse para a mãe, com os olhos cheios de inenarrável ternura: “Agora já podemos morrer em paz”. Naquele dia tomei a firme decisão de ler a obra-prima de Marcel Proust, “Em busca do tempo perdido”. Jane aprovaria, com certeza.